O PENSAMENTO
de Rayford Steele estava numa mulher
que ele nunca havia tocado. Com seu 747 totalmente ocupado pelos
passageiros, ligado no piloto automático, voando sobre o Atlântico para
aterrissar às seis da manhã no aeroporto de Heathrow, em Londres,
Rayford deixou por alguns momentos de pensar em sua família.
No
começo da primavera, ele passaria um tempo com sua esposa e seu filho
de 12 anos. Sua filha também estaria voltando da faculdade. Mas, por
ora, com seu co-piloto tirando um cochilo, Rayford acariciava a
lembrança do sorriso de Hattie Durham e sonhava com o encontro que
tinham marcado.
Hattie era a chefe do serviço de bordo. Fazia já mais de uma hora que ele não a via.
Rayford
costumava aguardar com certa ansiedade o momento de estar com sua
esposa. Irene era atraente e bastante jovial e ativa, mesmo nos seus
quarenta anos. Mas ultimamente ele se sentia como que repelido pela
obsessão dela pela religião. Era tudo o que a interessava e do que ela
falava.
Deus era importante para Rayford
Steele. Ele até se sentia bem na igreja sempre que podia freqüentá-la.
Mas, desde que Irene se apegou a uma congregação menor e passou a
participar de estudos bíblicos semanais e de cultos em todos os
domingos, Rayford começou a sentir-se deslocado e desconfortável. A
igreja que ela freqüentava era daquelas que jamais pensavam o melhor
sobre uma pessoa e a deixavam em paz. Os membros da igreja costumavam
perguntar a Rayford, cara a cara, o que Deus estava fazendo em sua vida.
"Abençoando
meu desempenho", respondia ele com um sorriso, o que parecia
satisfazer-lhes, mas Rayford passou a encontrar cada vez mais desculpas
para preencher seus domingos.
Rayford tentava
convencer-se de que era a devoção de sua esposa a um pretendente divino
que fazia a mente dele divagar. Mas sabia que a verdadeira razão disso era seu próprio instinto sexual.
Além
disso, Hattie Durham era extremamente deslumbrante. Ninguém podia
negar. O que mais o encantava era quando ela o tocava. Nada impróprio
nada vulgar. Ela simplesmente tocava seu braço ao passar num lugar
apertado ou colocava a mão suavemente em seu ombro quando ficava em pé
atrás do assento dele na cabina.
Mas não era
apenas o toque de Hattie que fazia Rayford gostar de sua companhia. Ele
podia adivinhar pelas expressões dela, por sua postura, pela troca de
olhares, que ela ao menos o admirava e respeitava. Se ela estivesse
interessada em qualquer outra coisa, Rayford poderia apenas conjeturar. E
foi o que fez.
Eles haviam passado algum
tempo juntos, conversando durante um aperitivo ou jantar, às vezes com
os companheiros de trabalho, outras, não. A reação de Rayford não tinha
ido além de um leve toque de mãos, mas seus olhos captaram um olhar mais
demorado de Hattie, e ele pôde apenas admitir que seu sorriso para ela
representava algum progresso.
Talvez hoje.
Talvez esta manhã, se a batidinha-código na porta não despertasse seu
co-piloto, ele tentaria tocá-la quando ela viesse pousar a mão em seu
ombro - de uma forma amigável, ele esperava que ela reconhecesse um
passo, o primeiro da parte dele, visando a um relacionamento.
Essa
seria a primeira vez que isso aconteceria. Ele não era nenhum puritano,
mas nunca tinha sido infiel a Irene. Havia tido inúmeras oportunidades.
Certa ocasião, sentiu-se culpado por ter-se envolvido numa troca de
carícias na festa de Natal da companhia, mas isso tinha sido 12 anos
atrás. Irene tinha ficado em casa, passando desconfortavelmente seu nono
mês a carregar seu filho Ray Júnior no ventre.
Embora
pudesse avançar o sinal, Rayford teve o cuidado de deixar a festa mais
cedo. Ficou claro para Irene que ele estava ligeiramente alcoolizado,
mas não suspeitou de qualquer outra coisa, não de seu virtuoso capitão.
Ele foi o piloto que tinha tomado dois martínis durante uma paralisação
por causa da neve, no aeroporto de O'Hare, em Chicago, e então,
voluntariamente, desceu do avião quando o tempo clareou. Ofereceu-se
para pagar a um piloto substituto, mas a Pan-Continental ficou tão bem
impressionada que, em lugar de puni-lo, usou sua atitude como exemplo de
auto disciplina e sabedoria.
Em duas horas
mais, Rayford seria o primeiro a ver sinais do sol, uma luz mortiça e
amarelo-cinzenta que indicaria o relutante alvorecer sobre o continente.
Até então, a escuridão através da janela parecia ter quilômetros de
espessura. Seus passageiros sonolentos tinham os quebra-luzes abaixados,
travesseiros e cobertores nos assentos. Por enquanto, o avião era um
quarto de dormir escuro e zunindo para todos, exceto para algumas
notívagas errantes, as comissárias, e uma ou duas delas atendendo a
algum chamado.
A questão naquela hora mais
escura antes da alvorada era se Rayford Steele se arriscaria a um
relacionamento diferente e excitante com Hattie Durham. Ele segurou um
sorriso. Estava brincando? Iria alguém de sua reputação fazer qualquer
coisa além de sonhar com uma bela mulher 15 anos mais nova? Ele não se
sentia mais tão seguro. Se ao menos Irene não tivesse se metido nesse
novo alçapão.
Será que isso esfriaria a preocupação dela com o fim do mundo, com o amor de Jesus, com a salvação das almas?
Depois, ela andou lendo tudo quanto lhe vinha às mãos sobre o Arrebatamento da igreja.
- Você pode imaginar, Rafe - disse ela, certa vez, exultante -, Jesus voltando para nos levar antes de morrermos?
- Sei, sei - respondeu ele, espiando por cima do jornal -, isso me mataria. Ela não gostou da brincadeira.
- Se eu não soubesse o que aconteceria a mim - disse ela -, não falaria tanto sobre esse assunto.
-
Sei com certeza o que me aconteceria - insistiu ele. -Eu morreria,
sumiria, e fim. Mas você, naturalmente, voaria diretamente para o céu.
Ele
não quis ofendê-la. Estava apenas gracejando. Quando Irene se afastou,
Rayford a seguiu, puxou-a, fazendo-a voltar seu rosto para ele, e tentou
beijá-la, mas ela agiu passiva e friamente.
- Vamos, Irene - disse ele. - Milhares não desmaiariam se vissem Jesus descendo para todas as pessoas boas?
Ela afastou-se chorando.
- Eu já disse a você e repeti. As pessoas salvas não são pessoa® boas, elas são...
-
Apenas perdoadas, sim, eu sei - disse ele, sentindo-se rejeitado e
vulnerável em sua própria sala de estar, e voltou para a sua poltrona e
seu jornal. - Se isto faz você sentir-se melhor, fico feliz em saber que
pode estar tão segura.
- Eu apenas acredito no que a Bíblia diz - respondeu Irene. Rayford
encolheu os ombros. Ele queria dizer "Bom para você", mas não quis
piorar a situação. Por um lado, invejava a confiança dela, mas, na
realidade, não aceitava o fato de ser uma pessoa mais emocional, mais
orientada pelos sentimentos. Ele não quis dizer-lhe isto, mas o fato era
que se considerava mais brilhante - sim, ele se considerava mais
inteligente. Ele acreditava em regras, sistemas, leis, padrões, coisas
que podemos ver, sentir, ouvir e tocar.
Se
Deus era parte de tudo isso, muito bem. Um poder mais alto, um ser
amoroso, uma força por trás das leis da natureza, ótimo. Vamos cantar
por isso, orar por isso, sentir-nos bem por nossa capacidade de ser bons
para os outros, e cuidar da vida. O maior receio de Rayford era que
essa fixação religiosa pudesse evaporar, como certas "ondas" em que ela
se envolvera, como as vendas que fazia de porta em porta oferecendo
produtos de limpeza ou de beleza, da academia de aeróbica, etc. Ela
poderia sair por aí tocando a campainha das casas e pedindo licença para
ler para as pessoas um ou dois versículos bíblicos. Em todo caso, ela
sabia muito bem o que estava fazendo.
Irene
havia se tornado uma genuína religiosa fanática, e de certo modo isto
liberava Rayford para sonhar de olhos abertos e sem culpa com Hattie
Durham. Talvez ele diria alguma coisa, sugeriria alguma coisa, daria a
entender alguma coisa enquanto ele e Hattie caminhassem pelo aeroporto
de Heathrow em direção à fila de táxis. Ou talvez antes. Ousaria
declarar-se agora mesmo, horas antes de aterrissar?
Junto a uma janela na primeira classe, um escritor estava curvado sobre um laptop. Ele
fechou o aparelho, com o propósito de voltar ao seu trabalho mais
tarde. Aos trinta anos, Cameron Williams era o mais jovem dos
articulistas do prestigioso Semanário Global. Era invejado pelos
veteranos da equipe de redatores, mas os superava em condições
idênticas, ou, então, a chefia de redação lhe atribuía a produção das
melhores matérias jornalísticas do mundo. Tanto os admiradores como os
seus detratores na revista o chamavam de Buck [potro], porque diziam que
ele estava sempre escoiceando a tradição e a autoridade. Buck
acreditava que vivia uma vida maravilhosa, tendo sido testemunha ocular
de alguns dos eventos mais preponderantes da História.
Um ano e dois meses antes, sua matéria de capa de 1o de
janeiro levou-o a Israel para entrevistar Chaim Rosenzweig, o que
resultou no mais estranho acontecimento que jamais havia experimentado.
O idoso Rosenzweig tinha sido a escolha unânime como o "Fazedor da Notícia do Ano" na história do Semanário Global. A
equipe da revista tinha costumeiramente de evitar que alguém notasse
que se tratava de uma clara cutucada no "Homem do Ano", da revista Time. Mas
Rosenzweig era o homem certo. Cameron Williams tinha entrado na reunião
da equipe preparado para argumentar em favor de Rosenzweig e contra
qualquer outra estrela da mídia que seus colegas indicassem.
Ele ficou surpreso quando o editor-executivo Steve Plank iniciou a conversa desta forma:
- Alguém deseja indicar algum estúpido ou uma pessoa qualquer em lugar do ganhador do Prêmio Nobel de Química?
Os membros da equipe principal trocaram olhares entre si, menearam a cabeça e fingiram que estavam começando a sair.
- Vamos cair fora, a reunião terminou - disse Buck. - Steve, não estou forçando a barra, mas você sabe que eu conheço o cara, e ele tem confiança em mim.
-
Vamos devagar, caubói - disse um rival, e depois se voltou para Plank. -
Você agora está deixando Buck escolher o trabalho que quer?
- Talvez - disse Steve. - E se eu quiser?
- Acho
simplesmente que este é um caso técnico, um artigo científico - afirmou
o concorrente de Buck. - Eu poria um redator de assuntos científicos
nisso.
- E colocaria o leitor a dormir - retrucou Steve Plank.
- Sejamos
razoáveis, vocês sabem que o redator de matérias chamativas sai deste
grupo. E esta não é uma matéria mais científica do que a primeira que
Buck fez sobre ele. Esta deve ser escrita de um modo que leve o leitor a conhecer o homem e compreender o significado de sua façanha.
- Farei
a indicação hoje - disse o editor-executivo. - Obrigado por sua
disposição, Buck. Penso que todos os outros estão igualmente dispostos.
Expressões
de ansiedade encheram a sala, mas Buck também ouviu palpites
resmungados de que o loirinho [Buck] receberia o sinal verde, o que
realmente aconteceu.
Tal confiança de seu
chefe e a competição com seus colegas fizeram-no cada vez mais
determinado a superar-se em cada tarefa. Em Israel, Buck ficou numa área
militar e encontrou-se com Rosenzweig no mesmo kibutz, nos arredores de Haifa, onde o entrevistara um ano antes.
Rosenzweig
era fascinante, sem dúvida alguma, mas foi sua descoberta ou invenção
-ninguém sabia bem em que categoria enquadrá-lo - que o tornou na
realidade o "Fazedor da Notícia do Ano".
O
humilde personagem intitulava-se botânico, mas ele era de fato um
engenheiro químico, formulador de um fertilizante sintético que
transformou as areias do deserto de Israel para produzirem como se
fossem uma estufa.
- A irrigação funcionou por várias décadas - disse o homem. - Mas ela só umedecia a areia. Minha fórmula, acrescentada à água, fertiliza a areia.
Buck
não era um cientista, mas sabia o suficiente para abanar a cabeça
diante daquela simples afirmação. A fórmula de Rosenzweig estava fazendo
de Israel rapidamente a nação mais rica do mundo, muito mais lucrativa
do que o oneroso petróleo de seus vizinhos. Cada centímetro de terra
florescia, dando grãos e flores, incluindo produtos jamais concebidos
antes em Israel. A Terra Santa tornou-se uma exportadora em potencial, a
inveja do mundo, com desemprego praticamente zero. Todos os seus
cidadãos prosperaram.
A prosperidade
viabilizada pela fórmula miraculosa mudou o curso da história para
Israel. Suprido de capital e recursos técnicos, Israel estabeleceu a paz
com seus vizinhos. O livre comércio e o trânsito liberado a todos os
países permitiram que todos os que amavam a nação tivessem acesso a ela.
Só não houve acesso, porém, à fórmula.
Buck
não havia sequer pedido a Rosenzweig que revelasse a fórmula ou o
complicado processo de segurança que a protegia de qualquer inimigo
potencial. O próprio fato de Buck ter sido hospedado pelos militares
evidenciava a importância da segurança. A manutenção desse segredo
assegurou o poder e independência do Estado de Israel. Nunca esse país
desfrutara tamanha tranqüilidade. A cidade murada, Jerusalém, era agora
apenas um símbolo, acolhendo todos aqueles que abraçam a causa da paz. A
velha guarda acreditava que Deus havia recompensado a nação após
séculos de perseguição.
Chaim Rosenzweig foi
homenageado em todo o mundo e reverenciado em seu próprio país. Os
líderes mundiais o procuravam, e ele era protegido por sistemas de
segurança tão complexos como aqueles que protegiam os chefes de Estado.
Por mais forte que Israel se tornasse com a glória recém-alcançada, os
líderes da nação não eram tolos. Um Rosenzweig raptado e torturado
poderia ser forçado a revelar um segredo que revolucionaria de modo
semelhante qualquer país do mundo.
Imagine o
que a fórmula poderia fazer se fosse alterada para funcionar nas vastas
planícies árticas da Rússia! Poderiam tais regiões florescer, embora
fossem cobertas de neve na maior parte do ano? Era esta a chave para
ressuscitar aquela enorme nação após o malogro da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas?
A Rússia havia se
tornado uma gigantesca nação deprimida, com uma economia devastada e uma
tecnologia ultrapassada. Tudo o que a nação ainda possuía era o poder
militar, e cada marco poupado destinava-se ao armamento. E a troca dos
rublos para marcos não havia sido uma transição pacífica para a belicosa
nação. A modernização do mundo financeiro limitada a três principais
moedas levou anos para se concretizar, mas, uma vez feita à mudança, a
maioria ficou feliz com isso. Toda a Europa e a Rússia negociavam
exclusivamente em marcos. A Ásia, a África e o Oriente Médio negociavam
em ienes. A América do Norte, a América do Sul e a Austrália
transacionavam em dólares. Um movimento visava a unificar mundialmente a
moeda, mas as nações que um dia tinham aceitado com relutância a
mudança consideraram inviável fazê-lo de novo.
Frustrados
por sua incapacidade de tirar proveito da fortuna de Israel e
determinados a dominar e ocupar a Terra Santa, os russos tinham lançado
um ataque contra Israel no meio da noite. O assalto ficou conhecido como
o Pearl Harbor russo, e, por causa de sua entrevista com Rosenzweig,
Buck Williams estava em Haifa quando isso aconteceu. Os russos enviaram
mísseis intercontinentais e bombardeiros MIG equipados com bombas
nucleares à região. O número de aeronaves e ogivas tomou claro que sua
missão era o aniquilamento.
Dizer que Israel
tinha sido apanhado de surpresa, conforme Cameron Williams havia
escrito, foi como dizer que a grande muralha da China era comprida.
Quando os radares de Israel localizaram os aviões russos, eles já
estavam quase sobre o país. O apelo dramático de Israel por ajuda de
seus vizinhos imediatos e dos Estados Unidos foi simultâneo com sua
interpelação para saber as intenções dos invasores em seu espaço aéreo.
Enquanto Israel e seus aliados tentassem montar qualquer coisa parecida
com uma defesa, estava claro que os russos levariam uma vantagem de cem
para um.
Eles dispunham apenas de alguns
momentos antes que a destruição começasse. Não dava mais para negociar
qualquer coisa, nem apelos para uma divisão de riqueza com as hordas do
Norte. Se os russos quisessem apenas intimidar e assustar, não teriam
enchido o céu de mísseis. Os aviões poderiam retornar, mas os mísseis
estavam armados e apontados para alvos.
Portanto,
isso não era um espetáculo para a arquibancada, visando a levar Israel a
humilhar-se. Não houve nenhuma mensagem para as vítimas. Não recebendo
explicação para as máquinas mortíferas cruzarem suas fronteiras e
descerem sobre o país, Israel era forçado a defender-se sozinho, sabendo
muito bem que o primeiro ataque de bombas resultaria no seu
desaparecimento virtual da face da terra.
Com
sirenes estridentes de alerta e as estações de rádio e televisão
enviando às possíveis vítimas aviso para se refugiarem nos frágeis
abrigos que pudessem encontrar, Israel defendeu-se contra o que seria
seguramente seu último momento na História. A primeira bateria de
mísseis terra-e-ar de Israel atingiu os alvos, e o céu iluminou-se com
bolas de fogo laranja e amarelo, o que certamente faria pouco para
aplacar a ofensiva russa, contra a qual não havia defesa.
Aqueles
que conheciam as disparidades e o que as telas de radar prenunciavam
interpretaram as explosões ensurdecedoras no céu como sendo o massacre
perpetrado pela Rússia contra Israel. Cada líder militar sabia o que
estava sendo esperado - uma devastação total quando a fuzilaria
atingisse o solo e cobrisse a nação.
Daquilo
que ouviu e viu na área militar, Buck Williams sabia que o fim estava
perto. Não havia como escapar. Mas, enquanto a noite ficava clara como o
dia e as terríveis e ensurdecedoras explosões continuavam, nada sobre a
terra foi atingido. O edifício tremia e ressoava. No entanto,
continuava incólume.
Lá fora, à distância,
aviões de guerra espatifavam-se no solo, abrindo crateras e espalhando
fragmentos de explosões. Entretanto, as linhas de comunicação
permaneciam abertas. Nenhum dos postos de comando foi atingido. Não
havia relatos de baixas. Nada tinha ainda sido destruído.
Era
aquilo uma espécie de brincadeira cruel? Seguramente, os primeiros
mísseis de Israel alijaram os bombardeiros russos, e os mísseis
explodiram numa altitude maior para evitar que o fogo causasse danos em
áreas do país. Mas o que aconteceu com o restante da força aérea
inimiga? O radar mostrou que a Rússia tinha com certeza enviado todos os
seus aviões, deixando talvez muito poucos para a eventualidade de algum
ataque contra ela. Milhares de bombardeiros desceram sobre as cidades
mais populosas do pequeno país.
O ronco e os
ruídos irritantes continuavam, as explosões eram tão aterradoras que os
militares veteranos cobriam suas cabeças e davam berros de desespero.
Buck sempre tivera o desejo de ficar perto das frentes de combate, mas
seu instinto de sobrevivência estava a todo vapor. Ele sabia sem sombra
de dúvida que morreria e começou a ter os pensamentos mais estranhos.
Por que nunca se casou? Sobrariam restos de seu corpo para que seu pai e
seu irmão o identificassem? Havia um Deus? A morte seria o fim?
Ele
saiu do abrigo em que estava, surpreendido pelo ímpeto de chorar. Não
esperava que a guerra fosse tudo isso. Imaginara-se espreitando as ações
bélicas de um local seguro, registrando o drama na mente.
Após
vários minutos no holocausto, Buck chegou à conclusão de que morreria
quer estivesse fora ou dentro daquele posto. Não se tratava de desafio,
mas de singularidade. Ele seria a única pessoa do posto que veria e
saberia o que iria matá-lo. Caminhou em direção à porta na ponta dos
pés. Ninguém o notou ou se preocupou em adverti-lo. Era como se todos
tivessem sido condenados à morte.
Buck forçou a
porta contra um forno em combustão, tendo de proteger os olhos da
intensa claridade das chamas. O céu incendiara-se. Ele ainda ouvia
aviões no meio dos estrondos e do ruído do fogo, e a explosão ocasional
de um míssil provocara uma nova chuva de chamas no ar. Ele ficava
aterrorizado e pasmo quando as grandes máquinas de guerra mergulhavam no
solo de toda a cidade, estatelando-se e incendiando-se. Mas caíam entre
edifícios, em ruas desertas e nos campos. Uma coisa qualquer atômica e
explosiva subia com ímpeto em direção à atmosfera, e Buck ficou ali no
calor, seu rosto formando bolhas e o corpo molhado de suor. O que estava
acontecendo no mundo?
Em seguida, pedaços de
gelo e granizos do tamanho de uma bola de golfe forçaram Buck a cobrir a
cabeça com sua jaqueta. A terra tremeu e ressoou, atirando-o ao chão.
Com o rosto contra os fragmentos gelados, ele sentiu a chuva caindo aos
borbotões. De repente, o único ruído era o fogo no céu, que se
enfraquecia à medida que era arrastado para baixo pela nevasca. Passados
dez minutos de ruídos trovejantes, o fogo se dissipou, e bolas de fogo
espalhadas bruxuleavam sobre o solo. O fogo desapareceu tão depressa
como veio. O silêncio pairou sobre a terra.
À
medida que nuvens de fumaça flutuavam e se desfaziam sob uma brisa
suave, o céu da noite reaparecia com sua escuridão azulada, e as
estrelas cintilavam pacificamente, como se nada de errado tivesse
acontecido.
Buck retornou ao posto carregando
no braço sua jaqueta de couro enlameada. A maçaneta da porta ainda
estava quente. Dentro, os líderes militares choravam e tremiam. O rádio
noticiava os relatos dos pilotos israelenses. Eles diziam que não
conseguiram chegar ao espaço aéreo em tempo para fazer qualquer coisa, a não ser ficar olhando toda a ofensiva aérea russa parecendo querer auto-aniquilar-se totalmente.
Milagrosamente,
nenhuma morte foi noticiada em todo o Israel. Em outras condições, Buck
poderia ter acreditado que algum misterioso desacerto tivesse levado
míssil e avião a destruir-se mutuamente. Mas as testemunhas disseram que
tinha sido uma tempestade de fogo, acompanhada de chuva, granizo e
tremor de terra, que anulara o esforço ofensivo.
Teria
sido uma chuva de meteoros determinada divinamente? Talvez. Mas o que
dizer de centenas e milhares de fragmentos de aço queimados, retorcidos,
derretidos, arremessados contra o solo em Haifa, Jerusalém, Tel-Aviv,
Jericó, e até em Belém - demolindo os antigos muros, mas não chegando
sequer a arranhar uma criatura viva? A luz do dia revelou o massacre e
denunciou a aliança secreta da Rússia com as nações do Oriente Médio,
principalmente a Etiópia e a Líbia.
No meio das ruínas, os israelenses encontraram material que poderia servir como combustível e preservar seus recursos naturais por mais de seis anos. Forças
especiais competiam com falcões e abutres pela carne dos inimigos
mortos, procurando enterrá-los antes que seus ossos fossem descarnados e
a doença ameaçasse a nação.
Buck lembrava-se
disso vividamente, como se tivesse ocorrido ontem. Se ele não estivesse
lá e visto tudo aquilo, não acreditaria. Ele conseguiu mais do que
precisava para levar o leitor do Semanário Global a comprar a
revista. Editores e leitores tinham suas próprias explicações para o
fenômeno, mas Buck admitiu que se tornou um crente em Deus naquele dia.
Estudiosos judeus indicaram passagens da Bíblia que falavam acerca de
atos de Deus destruindo os inimigos de Israel com tempestade de fogo,
terremoto, granizo e chuva. Buck ficou estupefato quando leu Ezequiel 38
e 39 a respeito de um grande inimigo do norte que invadiria Israel com a
ajuda da Pérsia, Líbia e Etiópia. Mais impressionante ainda era o fato
de as Escrituras profetizarem sobre armas de guerra usadas como fogo e
soldados inimigos devorados por pássaros ou enterrados numa vala comum.
Amigos
cristãos queriam que Buck tomasse a decisão de crer em Cristo, agora
que ele estava tão claramente em afinidade espiritual com Deus. Ele não
estava preparado para ir mais adiante, porém era certamente uma pessoa
diferente e também um jornalista diferente desde então. Para ele, nada
havia além da crença.
Com dúvidas sobre se
deveria dar seqüência com alguma coisa explícita, o capitão-aviador
Rayford Steele sentiu um impulso irresistível de ver Hattie Durham em
seguida. Ele se livrou dos apetrechos e apertou o ombro de seu co-piloto
ao sair da cabina de comando.
- Estamos
ainda no automático, Christopher - disse Rayford, enquanto o jovem
piloto se aprestava e ajustava seus fones de ouvido. - Vou fazer o meu
passeio da alvorada.
- Para mim, não parece alvorada, capitão - disse Christopher após ter piscado e umedecido os lábios.
- Provavelmente faltam uma ou duas horas. De qualquer maneira, vou ver se alguém está acordando.
- Tudo bem. Se alguém estiver acordado, apresente-lhe minhas saudações.
Rayford suspirou e acenou com a cabeça. Quando abriu a porta da cabina, Hattie Durham quase colidiu com ele.
- Não precisa bater - disse ele. - Estou saindo.
A
chefe do serviço de bordo puxou-o para o compartimento da cozinha, mas
não havia paixão em seu gesto. Seus dedos pareciam garras na fronte de
Rayford, e seu corpo estremecia no escuro.
- Hattie...
Ela
o empurrou para trás contra o compartimento da cozinha, seu rosto bem
perto do dele. Se ela não estivesse visivelmente aterrorizada, ele
poderia desfrutar este gesto e retribuir-lhe com um abraço. Os joelhos
de Hattie se dobravam enquanto tentava falar, e sua voz tornou-se um
grito agudo e choroso.
- As pessoas sumiram - ela tentava dizer-lhe num sussurro, encostando a cabeça no peito de Rayford.
Ele agarrou seus ombros e tentou empurrá-la, mas ela insistia em permanecer encostada nele.
- O que você diz...?
Ela agora soluçava, seu corpo estava fora de controle.
- Muitas pessoas simplesmente se foram!
- Hattie, este é um avião grande. Eles devem ter ido aos sanitários ou...
Hattie
puxou a cabeça de Rayford para baixo a fim de poder falar-lhe
diretamente ao ouvido. Apesar do choro, ela claramente se esforçava por
fazer-se entender.
- Estive em todos os lugares. Estou lhe dizendo: dezenas de pessoas sumiram.
- Hattie, ainda está escuro. Vamos encontrar...
- Não estou louca! Veja você mesmo! Em todo o avião, pessoas desapareceram.
- É uma brincadeira. Eles estão se escondendo, tentando...
- Ray! Seus sapatos, meias, roupas, tudo foi deixado para trás. Essas pessoas foram embora!
Hattie
soltou as mãos que mantinha sobre Rayford e ajoelhou-se choramingando a
um canto. Rayford quis confortá-la, ajudá-la a examinar melhor, ou
pedir que Chris o acompanhasse em todo o avião. Mais do que qualquer
coisa, ele queria acreditar que Hattie estava com a mente perturbada.
Ela devia saber disto melhor do que ele. Era evidente que ela de fato
acreditava que haviam desaparecido pessoas do avião.
Rayford
estivera sonhando de olhos abertos na cabina. Será que ainda estava
meio dormindo agora? Ele apertou o lábio contra os dentes e fez uma
careta de dor. Estava, portanto, acordado. Ele foi à primeira classe,
onde uma senhora idosa estava sentada com espanto no olhar em direção ao
nevoeiro da ante aurora, tendo em suas mãos o suéter e as calças de seu
marido.
- O que
aconteceu? - perguntou ela. - Harold? Rayford examinou bem o ambiente da
primeira classe. A maioria dos passageiros ainda estava meio dormindo,
inclusive o jovem senhor junto à janela com seu laptop sobre a mesinha porta-bandeja. Mas
realmente alguns assentos estavam vazios. Quando os olhos de Rayford se
adaptaram à pouca luminosidade, ele caminhou rapidamente para a escada.
E começou a descer quando ouviu a mulher chamá-lo.
- Senhor, meu marido...
Rayford pôs o dedo junto aos lábios em sinal de silêncio e sussurrou:
- Já sei. Vou encontrá-lo. Voltarei logo.
Que absurdo! Pensou ele enquanto descia, ciente de que Hattie estava bem atrás dele. Vou encontrá-lo!... Hattie apoiava-se em seu ombro, e ele desceu mais lentamente.
- Devo acender as luzes?
- Não - sussurrou ele. - Quanto menos as pessoas perceberem neste momento, melhor.
Rayford
queria ser forte, ter respostas, ser um exemplo para sua tripulação,
para Hattie. Mas, quando chegou ao compartimento de baixo, percebeu que o
restante do vôo seria caótico. Ele ficou assustado como os demais a
bordo. À medida que inspecionava os assentos, quase entrou em pânico.
Voltou ao cubículo que dividia os dois andares e deu um forte tapa na
face.
Aquilo não era brincadeira, nem mágica,
nem sonho. Alguma coisa estava terrivelmente errada, e não havia meio de
sair correndo. Haveria bastante confusão e terror sem que ele perdesse o
controle. Nada o havia preparado para uma situação como aquela, e ele
seria a pessoa para quem todos olhariam. Mas para quê? O que ele poderia
fazer?
Primeiro um, depois outro gritava ao
perceber que seu companheiro de assento tinha sumido e que suas roupas
ainda estavam ali. Eles choravam, berravam, pulavam de seus assentos.
Hattie agarrou-se a Rayford por trás, envolveu-o com os braços e cruzou
as mãos com tanta força em seu peito que ele mal conseguia respirar.
- Rayford, o que é isto? Ele afastou as mãos dela.
- Ouça, Hattie. Tanto quanto você, não sei de coisa alguma. Mas temos de acalmar essas pessoas e ter os pés no chão.
Vou fazer alguma espécie de comunicação, e você e seu pessoal mantenham todos em seus assentos, entendido?
Ela
assentiu com a cabeça, mas não via que as coisas estavam bem. Quando
ele se esgueirou lateralmente por trás dela para subir depressa à cabina
de comando, ouviu seu grito. É demais para acalmar os passageiros, pensou
ele, enquanto se voltava rapidamente para vê-la de joelhos no corredor.
Hattie pegou um paletó, uma camisa e uma gravata ainda intactas. As
calças estavam aos pés dela. Apavorada, pôs o paletó próximo à fraca luz
e leu o nome na etiqueta.
- Tony!
- exclamou ela, desesperada. - Tony se foi! Rayford arrebatou as roupas
das mãos de Hattie e as jogou atrás da divisão entre os andares. Ele a ergueu pelos cotovelos e a levou fora da vista dos passageiros.
- Hattie,
estamos a horas da aterrissagem. Não temos um plano para atender
pessoas histéricas. Vou fazer um pronunciamento, mas você deve fazer o
seu trabalho. Você pode?
Ela acenou afirmativamente, com um olhar vago, distante. Ele forçou-a a encará-lo.
- Você pode? - perguntou Rayford. Ela assentiu de novo.
- Rayford, vamos morrer?
- Não - disse ele. - Disto estou certo.
Mas
ele não estava certo de coisa alguma. Como poderia saber? Ele
preferiria enfrentar um incêndio num motor e até um mergulho
incontrolável. Uma queda no oceano certamente seria melhor do que isso.
Como poderia acalmar as pessoas no meio desse pesadelo?
A
esta altura, manter as luzes da aeronave apagadas causava mais mal do
que bem, e ele estava contente de poder dar a Hattie uma atribuição
específica.
- Não sei o
que vou dizer - afirmou -, mas acenda as luzes para que possamos fazer
um levantamento cuidadoso dos que estão aqui e dos que sumiram. Em seguida, pegue mais daqueles formulários para declaração dos visitantes estrangeiros.
- Para quê?
- Apenas faça isso. Avise-os para se prepararem.
Rayford
não sabia se tinha agido certo deixando Hattie a cargo dos passageiros e
da tripulação. Enquanto subia em disparada os degraus, notou outra
aeromoça voltando de um compartimento aos gritos e soluços. Por ora, o
pobre Christopher na cabina era o único no avião alheio ao que se
passava. Pior, Rayford disse a Hattie que, tanto quanto ela, não sabia
nada a respeito daquela ocorrência.
A verdade
aterradora era aquela que ele sabia muito bem. Irene estava certa. Ele e
a maioria dos passageiros tinham sido deixados para trás.